Tirando leite de pedra
- Marcos Sousa
- 16 de jul. de 2024
- 5 min de leitura
A expressão “tirar leite de pedra” traz a ideia de realização do impossível ou de realizar algo com muita dificuldade. É uma expressão recorrente nas empresas, as vezes usando de eufemismos como “isso é desafiador”, que ficam mais bonitos na fita. São exemplos, projetos com tempo e orçamentos “agressivos”, metas comerciais ou de produção “desafiadoras”, metas de custos “ousadas”. Mas, como diz a Poliana1, é possível ver algo bom por trás disso.

Não sou muito fã da protagonista, mas gosto muito do que fala o Eliyahu Goldratt, pai da Teoria da Restrições (TOC)2. A TOC tem como base a ideia de que todo sistema tem pelo menos uma restrição que impede o seu crescimento. Podem ser de ordem física ou política. Assim, defende ele, é possível alavancar bons resultados sem obrigatoriamente grandes investimentos ou, até mesmo nenhum, apenas identificando estas restrições e gerenciando-as adequadamente. Assim, neste caso, vou concordar com a Poliana, e afirmar que é possível tirar leite de pedra.
Não me arvorarei a apresentar os conceitos da TOC, mas uma coisa que ela deixa clara é que poucas restrições (uma ou duas) são as causas dos problemas, ou efeitos indesejados, todo o resto deriva delas. E ainda, as políticas, as regras, são grandes fontes de restrições, uma vez que a acomodação cega3 a elas limita nossas ações e tendemos a buscar soluções onde não está o problema. E, como profissionais de TI, sempre achamos que mais memória, mais servidores, um upgrade, um BI, uma nova metodologia, um novo ERP trará a solução, quando na verdade bastaria mudar a regra, a política ou a crença.
Deixe-me explicitar quanto isso é poderoso através de uma experiência pessoal.
A ideia do bug do milênio, associada à necessidade da empresa por mais qualidade e celeridade nas informações para a gestão dos resultados, levou a adoção de um ERP, que permitiu ao longo dos anos integrar todas as unidades (obras e escritórios), mesmo as unidades mais distantes e em regiões ermas.
O processo de gestão de resultados, vigente à época, era o seguinte. Cada unidade coletava as informações em um sistema local, desenvolvido em Clipper5 (É o novo!!), e ao final do mês enviava um disquete, via malote, para o setor responsável. Este consolidava, analisava, corrigia e gerava os relatórios. Só o processo de consolidação e análise levava mais de um mês.
Outros processos seguiam a mesma linha, alguns também enviando disquetes, como o gerenciamento de obras, ou apenas documentos, como a folha de pagamento e a contabilidade. Malotes e pilhas de papeis enfeitavam as mesas destes departamentos durante todo o mês.
Para um filme a história é linda, mas e o quico6, né? Vamos nós!
O processo de apuração dos resultados não era eficiente, mesmo os instrumentos de análise sendo de excelente qualidade, uma vez que as informações chegavam muito atrasadas, com pouca qualidade, devido às restrições físicas, distância e a falta de sistemas. A solução para superar a restrição foi subordinar todas as análises da empresa (financeira, resultado, custos, contabilidade, gestão da obra, folha) à regra “o fechamento é mensal”.
Veio o ERP e em menos de um ano estava implantado nas obras e escritórios distribuídos em todo o país. Gradativamente, com investimentos (sim, também são necessários, mas não suficientes) e com a melhoria da tecnologia oferecida pelas operadoras de Telecom, conseguimos integrar on-line todas as unidades. Assim, melhoramos a qualidade da informação, superamos a distância e melhoramos muito a gestão dos resultados. Sem nenhuma modéstia a nossa equipe era foda!
Moral da história, macho veio? Simples, gafanhoto ou gafanhota7, nós retiramos a restrição, mas não mudamos a regra. Continuamos fazendo todos os nossos controles mensais. Isso implicou que mesmo tendo condições de fazer uma gestão financeira mais eficiente ainda fechávamos o caixa no final do mês. O nosso processo de compras, que custou uma pequena fortuna, não serviu praticamente de nada, pois as informações eram colocadas no sistema de acordo com o tempo/interesse do comprador, pois a regra que ordenava o processo, assimilada por todos e questionada por ninguém, era: “tudo no final do mês”.
A bem da verdade, é claro que tínhamos processos que dependiam do encerramento mensal (por exemplo, folha e contabilidade), e, no caso da engenharia, ainda tínhamos o processo de fechamento da medição que se estendia um pouco mais. No entanto, limitamos todos os outros processos a regra “tudo no final do mês”.
É obvio que investimentos são necessários, mas em muitos casos, dentro dos recursos que dispomos, é possível achar uma teta para tirar o leite. É também verdade que as empresas sovinam recursos, mas é viável gerar valor (usando esta expressão aumentei R$300,00 na minha hora) com o que temos. Não estou fazendo o jogo do Contente (o da Poliana), mas nós, as organizações, os governos todos temos limitações financeiras e prioridades que nem sempre passam pela TI, e nem sempre a solução está na tecnologia. E aí insisto, “conhecer o negócio” é também entender o porquê das decisões.
Moral da história? Aqui há uma enorme oportunidade para o gestor de TI, pois a TI, através dos serviços e sistemas que gerencia, está imersa em toda a organização, e com acesso privilegiado a seus processos, informações e problemas8. Mesmo que você não tenha poder decisório, é capaz de contribuir significativamente e alavancar seu valor.
Faça uso deste privilégio, que será mais eficiente, seguindo a regra de ouro: respeite as pessoas9. E isso é de graça!10.
Quanto ganhei de aumento com esta descoberta? Nem um tostão, pois só entendi isso muito tempo depois. Assim, aprenda com o erro dos outros (lições aprendidas, sem ônus), e dê uma olhada se não tem aí uma teta dando sopa, ou melhor, leite.
1 Protagonista da trilogia da escritora Eleanor H. Porter, publicado a partir de 1915, que procura sempre ver o lado bom das coisas, fazendo o jogo do contente.
2 Sugiro conhecer um pouco da teoria, e ler o livro Necessária Sim, mas Não Suficiente, onde o autor faz uma análise do uso da tecnologia a luz da teoria. Leitura agradável com boas sacadas, ou insights (para aumentar o valor da hora).
3 É importante dizer que esta limitação cega não é algo intencional, apenas ao longo do tempo nos acostumamos a agir de alguma forma que nem questionamos se é ou não mais necessária.
6 Quico, simplificação da expressão e o que eu tenho a ver com isso.
7 Não há distinção de gênero no substantivo gafanhoto, mas deve-se inserir o termo fêmea logo após a palavra (gafanhoto fêmea).
8 Faz um exercício. Deseja o macrofluxo da empresa e depois sobrepõe os serviços oferecidos pela TI que vai tomar um susto.
9 Ler o artigo O MAIOR ABANDONADO.
10 Certamente há um custo pesado de dedicação para o entendimento dos processos.